ERA APENAS UMA COBRA
imagem de autor desconhecido
Vez em quando saio pelas dez da noite e vou tomar água de coco perto de um shopping praiano aqui nas proximidades de casa. Pertinho de um outro shopping, especializado em artesanato.
A água de coco é um real e cinquenta centavos. Lá na frente, no caminho da praia, é mais barato, mas só rola de dia. Não tenho carro nem bicicleta, vou caminhando. Já pensei em ir me arrastando, igual a uma cobra, mas como iam estranhar, mudei de idéia. Também achei que ia demorar um pouco mais.
Você consegue imaginar? Tire as asas, as pernas e os braços da imaginação. Deixe apenas o couro e o corpo, longo, do rabo até a cabeça. Eu me imagino levantando, sacudindo, tirando a poeira, todo sujo e pedindo uma água de coco. Meu rosto totalmente ofídio, minha aparência réptil, meu parentesco lagarto. Meu couro singelosamente escamoso.
O dono do quiosque resolve ajudar. Como não tenho braços nem mãos, ele levanta o coco e coloca o canudo na minha boca. Quando ele menos espera, eu o abocanho e começo a engolir. Tipo uma jibóia do sertão comendo um boi.
Aos poucos começo a engolir o dono do quiosque onde costumo beber água de coco lá pelas dez da noite. Vou engolindo, pacientemente. Fico com ele entalado na garganta, com o maxilar deslocado, a boca aberta 180 graus. Enquanto transpiro vou deglutindo o homem por inteiro.
Os clientes do quiosque em pânico, olhando imóveis, assustados de verdade. Apesar do medo, não podem nem piscar o olho, tamanha a curiosidade. Talvez eles não saibam a diferença entre as ruas e a televisão.
Uns empunham seus celulares e se apressam em chamar a polícia. Outros, mais desesperados e solidários, preferem ligar pra SAMU, o serviço de socorro médico. Ninguém tem coragem de se aproximar.
De repente a polícia chega, já metendo bala. Quer nem conversa. Na opinião deles cobra não fala. E se fala, merece morrer. Mas cada bala que a polícia atira rebate no couro do réptil. É um couro de grande eficiência, desenhado com material ultra reforçado, projetado para operações de alto risco.
Eu apenas querendo dizer: "sou uma simples cobra com fome”, “eu moro no Parque das Dunas", “alguém chama o IBAMA”, “sou uma espécie em extinção". Mas com o cara entalado na garganta, tudo que eles escutam é o grito do cara agonizando.
Mesmo que eu usasse toda minha habilidade de cobra para falar a língua dos homens, com toda minha energia buscando a mais alta e nobre perfeição, ainda seria insuficiente para fazê-los me entender.
Resta-me apenas engolir minha refeição da semana. Eu, uma simples cobra, vestida de terno e gravata, se fingindo de gente importante pra enganar os bestas e me alimentar. Aí o cara cai no conto, do vigário vigarista.
Os policiais atirando na cobra e a bala resvalando, indo pra outras direções. “Que cobra é essa?", muitos se perguntam, enquanto tentam se livrar das balas que retornam. Eles nunca pensaram que a natureza fosse capaz de tantas mutações.
As balas acabam. A polícia não está equipada com granadas. As algemas não têm utilidade aqui. A cobra engoliu totalmente o dono do quiosque. Ficam todos apreensivos, esperando o próximo gesto da cobra, que agora pesa setenta e cinco quilos a mais. Nada ágil, mesmo assim nunca é bom confiar demais numa cobra.
A cobra de repente esbugalha os olhos, emite um ruído ensurdecedor e vomita o homem o inteiro, morto. Então explode como fogos de artifício, na frente de todos. No lugar dela fica um rastro de fumaça colorida, que aos poucos vai se dissipando.
A polícia comunica às outras viaturas. A mulher que trabalha no quiosque chora a perda do emprego. Os que se amontoam para ver a cena lamentam não ter nenhuma máquina fotográfica. A imprensa já está a caminho.
E o dono do quiosque ali, cuspido, um corpo estendido no chão. Morto por não desconfiar de uma cobra com terno e gravata.